
Sempre que uma mãe, um filho ou familiar, me procuram com a voz embargada, o laudo na mão e o coração apertado porque precisa de um medicamento que o SUS não fornece, é impossível não sentir o peso da responsabilidade de quem atua na judicialização da saúde. A urgência é real. A dor é real. E o tempo na saúde, muitas vezes, é questão de vida.
Durante muito tempo, o Judiciário foi o “remédio possível” para o silêncio da administração pública. A judicialização salvava vidas e preenchia lacunas do SUS, mas o tempo passou, os processos se multiplicaram, os pedidos se tornaram mais complexos, e começamos a perceber que, embora cada decisão beneficiasse um indivíduo, o sistema como um todo começava a adoecer.
É nesse momento que entram os Temas 6 e 1234 do Supremo Tribunal Federal, marcos que não negam o direito à saúde, mas nos convidam a repensar como ele é buscado e garantido.
O Tema 6 estabelece o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo SUS, mesmo quando não estão listados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), — baseado na comprovação de necessidade clínica, ausência de alternativa terapêutica e segurança sanitária. O Tema 1234, estabelece o fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA pelo SUS só pode ser autorizado em situações excepcionais ( comprovação da necessidade, ausência de alternativas terapêuticas, registro em agência sanitária internacional e ação judicial contra a União – Devido às competências federais, os processos devem ser direcionados à União).
Essas teses não vieram para impedir o acesso à saúde. Vieram para trazer racionalidade. Vieram para proteger o próprio sistema, que é coletivo, e garantir que ele continue existindo para todos.
O Ministério Público, nesse novo cenário, é chamado a se reposicionar. Já não basta ser apenas promotor de ações. É preciso ser promotor de soluções. É necessário avaliar cada caso à luz das evidências científicas, dialogar com os gestores de saúde, provocar a CONITEC de forma técnica, buscar alternativas extrajudiciais antes da ação.
Como advogada especialista em Direito Médico e da Saúde — compreendo o desespero, a ansiedade, a esperança depositada na Justiça. Já me emocionei com famílias ao receber uma liminar favorável, mas já lamentei decisões mal fundamentadas que atropelaram pareceres técnicos e desorganizaram o sistema que deveria proteger.
Acredito que tecnicidade e sensibilidade não são opostos, ao contrário, precisam caminhar juntas. O Ministério Público não perde força ao escutar, dialogar ou propor mediações. Ganha legitimidade. A judicialização não pode ser um reflexo automático, mas uma ferramenta consciente, embasada e estratégica.
Este artigo é, sobretudo, um convite para que todos os operadores do Direito — especialmente o Ministério Público — atuem com coragem, mas também com discernimento. Que sigam firmes na defesa dos vulneráveis, mas com os olhos voltados ao coletivo. A saúde pública precisa de decisões justas, mas também sustentáveis. E a justiça, como bem sabemos, não se constrói apenas com caneta: se constrói com escuta, técnica e humanidade.
Mayra C. Vidal S. Morais: OAB/MG 213.717. Especialista em Direito Médico e da Saúde pelo IPDMS. Membro da Comissão de Direito Médico e Saúde Mental e da Comissão de Direito do Consumidor pela da OAB Divinópolis/MG. Especialista em Direito dos Autistas e das Pessoas com Deficiência pela FaCiências. Pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade CERS. Advogada na luta por medicamentos de alto custo, tratamentos negados e pela efetivação dos direitos das pessoas com deficiência Atuante nas áreas de Direito Cível, Previdenciário e Trabalhista. E-mail: mayra@vidalmorais.adv.br