O bem jurídico e os limites da punição

O bem jurídico, tradicionalmente apresentado como critério de legitimação e limitação da aplicação da pena, encontra-se diante de uma encruzilhada teórica e prática nos dias atuais. A despeito de todos os esforços doutrinários para conferir-lhe uma definição democrática, materializadora da justiça ou digna, o instituto ainda enfrenta obstáculos relevantes na sua aplicação, porém negligenciados.

Entre os problemas enfrentados está o aspecto obscuro da vinculação entre os fins do Direito Penal e os fins da pena. Segundo penalistas que enfrentam tal tópico, esse elo é muitas vezes ignorado nas discussões sobre bem jurídico, o que compromete sua função de critério crítico da intervenção penal. O reconhecimento de que algo é um bem jurídico-penal exige um juízo valorativo sobre a necessidade da tutela penal — um juízo que, por vezes, é substituído por decisões apressadas e politizadas.

Outro desafio é a sobreposição do instituto pela doutrina contemporânea, que, em tentativas de modernização, acaba por esvaziar o conceito de bem jurídico ou dissolvê-lo em fórmulas de difícil aplicabilidade. Isso enfraquece seu papel de limitador do poder punitivo. Como consequência, o instituto passa a justificar — ao invés de restringir — a aplicação da pena, invertendo sua lógica fundante.

Além disso, destaca-se a crescente amplitude das decisões judiciais, que, ao invocarem bens jurídicos genéricos ou vagos (os quais incluem a categoria criada na contemporaneidade dos bens jurídicos “supraindividuais”), amplia perigosamente o espectro do que pode ser criminalizado. Há, nesse cenário, um enfraquecimento dos princípios penais da Lesividade e da Fragmentariedade, pilares do Estado Democrático de Direito. Como consequência, abre-se espaço para que o poder punitivo atue onde não é necessário — ou sequer legítimo.

Esses desvios refletem uma tendência preocupante: a instrumentalização do Direito Penal como mecanismo simbólico, voltado a respostas rápidas e visíveis diante de anseios sociais, ainda que à custa de garantias fundamentais. É o que se observa, por exemplo, na proliferação de tipos penais supracitados, voltados a bens jurídicos supraindividuais (pouco delimitados) ou à criminalização de condutas que poderiam ser resolvidas em outras esferas jurídicas, o que ataca deliberadamente o princípio da Intervenção Penal Mínima ou, para aqueles que gostam do latim, ultima ratio.

Diante disso, é preciso reafirmar que o bem jurídico-penal deve ser critério de contenção, e não de expansão, do sistema punitivo. Sua tutela deve ser justificada não pela simples existência de um conflito, mas pela impossibilidade de resolução do conflito por outros meios antes de se lançar mão da pena. Trata-se, como destaca a doutrina, de um juízo de última razão, que exige rigor metodológico e compromisso com a democracia.

Neste contexto, é fundamental que os poderes se reconectem com os princípios penais e constitucionais. A pena é a mais dura das respostas estatais — e seu uso desmedido fragiliza a própria legitimidade do sistema legal.

Para quem ainda não abre mão do conceito do bem jurídico como limitador do poder punitivo, o resgate da centralidade crítica desse instituto não é apenas uma questão teórica, mas uma urgência prática. Em tempos de hipertrofia penal e de retrocessos institucionais, cabe à comunidade jurídica — e em especial à advocacia — reivindicar o comprometimento do ordenamento jurídico e suas instituições com a liberdade, a justiça e a dignidade humana.

Para os que se interessarem, aprofundo essas discussões no livro “Os Bens Jurídicos-Penais: o problema de definição do objeto de tutela do Direito Penal”, o que foi tema da minha monografia de graduação.  

Júlia Satiro – Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, advogada criminal OAB/MG 237.902, professora do ensino público estadual, escritora, e graduanda em História.

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